segunda-feira, janeiro 03, 2011

Flores?

Começou que ela já havia acordado bélica, e eu estava numa daquelas semanas onde precisava mesmo trabalhar sério e minha teoria é que é impossível alguém ser feliz tendo que trabalhar sério, e muito, desde cedo. Decerto há exceções, mas eu não me incluo nelas e portanto elas não me interessam nem um pouco.

Mas havia um acordo tácito de casal de evitar muitos questionamentos ou discussões logo pela manhã e portanto, acordei, entrei no chuveiro e escovei dentes e mergulhei nas roupas e beijo nela sentada na cama e vamos correr contra o tempo.

Só que não seria tão simples assim.

- Nós precisamos conversar, Alfredo.

- Em cinco minutos eu já estarei atrasado, Nina.

- Eu não perguntei se você tinha as horas, eu estou dizendo que precisamos conversar.

Não, não seria nada simples.

- Nina, eu tenho uma reunião marcada dentro de vinte minutos, amor.

Ela se sentou na cama e pôs os olhos em mim, a esperar que eu a obedecesse. Eu não tinha muito o que fazer e aceitei a derrota prévia, sentando-me.

- Você ainda me ama, Alfredo?

- Que pergunta, Nina. Claro que te amo.

- Não parece mais. Tu tens andado estranho, cheio de mistérios. Parece que me evita.

- Eu te amo, Nina. Você está inventando coisas. E estou atrasado!

Eu precisava falar do horário de trabalho. Ela me olhava sentada na cama, nenhum sorriso. Ela estava só de calcinhas, o cabelo desgrenhado, o rosto de sono, linda. Eu não disse que ela estava linda, só que estava atrasado. E estava mesmo.

- Você não me ama mais, tá vendo? Você está me achando gorda, você nem está olhando pros meus peitos aqui.

Pornografia numa hora dessas. Nina se deitou novamente. Olhava para o teto, muda.

Fiquei ali de pé à beira do precipício. Estava atrasado, estava vencido, nem ao menos flores ao alcance para remediar o tufão.

terça-feira, setembro 23, 2008

Não diga nada

O quarto estava muito silencioso quando consegui entrar. Lá dentro havia Nina; mãe de um natimorto, dona de um celular roubado, vítima de um acidente de trânsito. Seu rosto feito moldura de gesso, uma enfermeira anotando coisas dos aparelhos que monitoravam sua respiração e batimentos cardíacos e sabe-se lá mais o quê.

Andei feito uma pluma, ou feito uma pluma andaria se fosse o caso dela andar. Me sentia invadindo um espaço que não me pertencia, apesar daquela mulher ter invadido toda a minha vida em coisa de pouco mais de um ano. Havia três meses que morávamos juntos. Era muita informação para mim ao entrar naquele quarto, naquele silêncio - não vamos esquecer, eu era meio pateta, meio lento.

A enfermeira fez um leve aceno com a cabeça e disse que me deixaria a sós, que ela estava bem, mas ainda sedada. Não tive coragem de perguntar se ela já sabia que havia perdido a criança, eu nem saberia o que dizer a respeito e provavelmente começaria a chorar e seria apenas minhas lágrimas e minha contrição diante de sua dor, não era o momento.

"Ah, merda", era o que se passava pela minha cabeça ao me postar ao seu lado, seu rosto ao alcance de minhas mãos. Ela havia acordado mãe, havia se arrumado para ir trabalhar mãe, deveria estar dirigindo feito mãe, sorria feito mãe há poucos dias, outro dia mesmo eu havia percebido o corte de cabelo novo e achado que havia algo ali. Ela mencionou algo sobre "uma menina" mas pra si do que pra mim numa noite na cama e eu deixei passar. Deixei passar!

Ali de pé só me restava o papel de impotente. Eu não era médico, não era milagreiro, não era nada além do cara que perdeu um filho de semanas, um amontoado de células em gestação, um ser mais bem nutrido de surpresas e esperanças do que identidade. Nina apenas respirava e continuava viva naquela cama, o corpo seguindo adiante apesar da mente anestesiada. Ali fiquei, olhos em seu rosto pelos próximos quarenta ou setenta minutos.

Ela acordou e eu não disse nada. Ela já sabia.

terça-feira, junho 12, 2007

Surpresas

Gravar um CD com a trilha sonora do primeiro filme bom que se viu juntos é bom.

Aprender a cozinhar risoto de camarão e ainda ter o tino de improvisar uma salada é bom.

Imprimir a bonequinha estilo "South Park" dela numa camiseta é bom.

Pétalas vermelhas no caminho da porta de casa até a cama, onde está aquele perfume que ela suspirava embrulhado numa caixa de bombons é bom.

Uma garrafa de tequila é bom. Funciona melhor com um bilhete. Melhor ainda se você conseguir levantar mais cedo e deixar a garrafa com o bilhete junto no seu travesseiro.

A letra de "Cotidiano" pode ser recortada em quadras que ela irá encontrar pela casa numa tarde em que você esteja jogando bola.

Esquecer do aniversário de 7 meses, lembrar disso bêbado na madrugada e no dia seguinte se sair com um cartão do Garfield onde se lê "Ops! Esqueci! Mês que vem a gente tenta de novo." não é bom.

terça-feira, maio 15, 2007

Você é linda

Nina me deixou um presente pra selar que éramos oficialmente namorados após nos aceitarmos enquanto um casal ipso facto. Ela dormiu lá em casa e acordou antes de mim, pra deixar sobre minha tevê um porta-retratos com seu rosto em close, os olhos profundos em cílios e o dedo em riste a pedir silêncio. Tipo uma enfermeira, mas enfermeira alguma tinha tanto charme no gestuário, ou aquele vermelho na unha, ou aquela pinta na bochecha ou simplesmente me hipnotizasse com os olhos feito Nina.

Porque Nina me hipnotizava. Eu não era capaz de fazer muita coisa quando estava prestando atenção nela, e talvez por isso ela sempre tenha me achado meio pateta. Minha existência se concentrava em ficar vendo seu corpo, suas reações, o andar, o riso, os olhos se movendo, os dentes mastigando, as mãos bailando. Poderia ficar sem fazer mais nada por horas.

Tinha vezes que ela me via assim e sorria, como que pra me acordar de mim mesmo com ternura. "Acorda, guri", ela ralhava em brincadeira e alguns beijos. Numa tarde de sábado ela começou a deixar a toalha cair aos poucos e eu fiquei vendo seu corpo no meio da sala, como quem desvela um grande mistério. Ela sorria esfinge. Nesse dia, ela sorriu esfinge, e retomou a toalha e foi se vestir.

Noutra tarde, o filme ficou passando na tevê e ela em meu colo me olhava contemplar seus olhos que me olhavam ver-me contemplando seus olhos. Foi nessa tarde que eu disse que a amava, como quem não poderia mais ser capaz de dizer isso a outra pessoa. Lembro que foi a primeira vez que a fiz chorar e foi um choro tão bonito, a lágrima desceu em seu rosto e se firmou na minha calça.

Antes de acordar na minha frente para deixar seu rosto sobre o televisor de casa, ela saiu comigo oficialmente como a minha namorada pela primeira vez e sorriu diante da pipoca na frente do parquinho, fechou os olhos pra me beijar nas calçadas da República, sorriu de contente porque eu dei o braço numa rua que atravessamos. Quando eu saí da cama, ela já estava no banho, já tinha colocado uma música. E de cima da tevê, me olhava, pedindo silêncio, pedindo atenção e sendo a mulher mais linda do mundo.

Fez-se amor por todo o dia naquele apartamento. De olhos bem abertos.

sexta-feira, maio 11, 2007

Crise

- Essa ligação no seu celular, de quem é?
- Que ligação?
- Sonso! Esse número "confidencial"...
- Se é confidencial, como vou saber... nem atendi.
- E não atendeu por quê?
- Não atendi, oras! Sei lá quem ligou? Vai que é pra clonar meu número!
- Tu és ridículo mesmo, guri.
- Eu? Ridículo?
- ...
- Agora não falas mais comigo, não?
- ...

Eu, ridículo. E cheio de medo de que ela fosse embora.

terça-feira, abril 03, 2007

Ooh, now let's get down tonight

Nina dormia ou descansava longe. Eu sentia meu corpo suar contra a colcha da cama, o pau mole e cansado. Havíamos marcado para caminhar de manhã naquele sábado no Parcão, era perto da casa dos pais dela e de lá fomos parar na minha cama. E foi algo estranho, porque não era a primeira ou segunda vez mas também ainda não havia aquela intimidade de casais.

Nina nunca me dissera se, por algum acaso, tinha namorado. Eu ainda não sabia seu sobrenome e muito menos a data de seu aniversário. Eu suspeitava que fosse gremista e já percebera que ela gostava de mordidas. Isso me intrigava. Estava fazendo sexo há quase uma semana com uma semi-desconhecida - e a melhor forma de descrever nosso relacionamento era dizer que fazíamos sexo.

Não teve aquele nuance todo de casais que vão crescendo, primeiro uma mão matreira, depois um beijo roubado, uma língua arrojada e finalmente "if you don't know the things you're dealing, I can tell you, darling, that it's sexual healing". De certa forma, eu esperava que ela abrisse o jogo porque, não sei, ela sempre tomava a iniciativa ou eu era apalermado deveras. Eu tinha medo de abrir a boca e quebrar aquele encanto, afastar aquela mulher que por segundos me fazia deus e o diabo.

Mas aquele silêncio começava a incomodar. Eu ficava encarando o teto e fechava os olhos, porque estava cansado e afinal havia saído cedo daquela mesma cama onde já me encontrava regresso. Então sua pequena mão de menina acariciou uma orelha minha e pude ouvir:

"Gosto tanto de ti, guri."

Sorri por instinto, quem sabe por descuido. Ela me olhava ao deixar as palavras no ar do quarto. Fui até a sala, sorrateiro, e coloquei o Marvin no tocador de CDs.

Pela primeira vez, ela se empossou de um travesseiro meu e dormiu na minha cama. Cabia a mim descobrir se ela gostava de dormir sob um abraço.

sexta-feira, março 23, 2007

Muscas en la casa

Nina estava no hospital, em meio a sangue e sombras na imensidão do branco e do silêncio e de bloqueadores químicos contra a dor. Eu não sabia, estava em casa, era dia de folga, era dia de dormir um pouco mais e acordar depois dela sair e demorar na mesa do café, ler as notícias, ouvir alguma música e ler um bilhete deixado sobre o jornal com aquilo que Nina precisava pra casa, ou pra ela, ou pra nós.

Uma vez ela deixou simplesmente "Quero ouvir a Janis quando chegar e te encontrar de banho tomado. Ah, antes disso, tá faltando sabão em pó."

Eu já sabia que naquele dia iria fazer uma pequena feira atrás de brócolis, tomates, cebolas e bananas - Nina adorava bananas no café e depois da janta. Mas tinha que ser banana prata, porque banana d'água a deixava enjoada e ela ia ralhar comigo depois.

Nina precisava sair cedo porque o trânsito engarrafava, e ela não era uma pessoa muito tratável diante do volante. Virava um autêntico centroavante diante de gol legal suspeitamente anulado, não havia mãe em sua boca que pudesse passar incólume. Mas naquele dia após um motoboy fechar sua preferência e o carro encontrar outro e a calçada e por fim uma árvore, ela apenas chorou feito cão desmamado, ou melhor, ganiu lágrimas. Porque logo apareceu o sangue e ela viu o sangue esvair pela calcinha e então desmaiou.

Alguém tratou de chamar ambulância, uma viatura encostou. Ela foi levada pro hospital e por aquela hora eu deveria estar no banho antes de tomar café. Na confusão alguém teve presença de espírito o suficiente para afanar o celular que ia perto do câmbio e só me ligaram do hospital quando me levantava para guardar a louça do café. As palavras acidente e hospital soaram impossíveis. O carro estava em meu nome e pelo registro chegaram a mim. Ela está estável mas parece que perdeu o bebê.

Aí me dei conta que fui pai sem nunca ter sido. Me dei conta de palavras e sorrisos que pareciam algo mais. Me dei conta que moscas atacavam a toalha de mesa.

domingo, fevereiro 11, 2007

Amor, essa idiossincrassia pequeno-burguesa

Nina não era uma garota fácil. Nina não prestava atenção nas bobagens que eu dizia após a primeira dezena de chopes. Nina sorria decerto, mas um sorriso seu que não me dava maiores liberdades.

Nina, sobretudo, me fazia calar. Sem esforço, bastava apenas um gesto ou uma mudança repentina no ritmo da respiração e eu me calava. Não sei se algum livro de filosofia ou auto-ajuda está escrito que o amor passa pelo respeito ao silêncio do próximo, mas eu tenho plena fé de que os amantes conseguem calar na hora certa.

E em meu silêncio, eu descobria melhor Nina. Observava mais e melhor, ouvia sem ruídos. E ia me deixando levar em cada nuance, como na vez em que reparei que ela tinha uma pronúncia diferente nas consoantes fricativas. Não sei explicar, mas era diferente e era algo que eu não escutava em nenhum outro lugar. Em cada, faca, fêmur ou farofa eu tinha síncopes e escalava os maiores everestes.

O problema, e era um senhor deles, era Nina gostar de mim. Digo que gostava, mas não era esse gostar de me comer com os olhos quando fazia enamorada após a terceira taça de vinho, quando eu arrumava a tevê, quando eu dei um jeito no chuveiro que pingava, quando chegava nervoso em casa. Isso foi depois.

Diz ela que foi depois de um dia que me viu assediando acintosamente uma prima dela, a Marta. Ela reparou o tom da voz, o olhar carnívoro, a fumaça do cigarro expelida com vontade. E teve ciúmes de que Marta estava vendo um homem em ação e era mais nova que ela, dois meses e cinco dias mais moça.

Uma hora, Marta, confiante, foi ao banheiro e nos deixou em par na mesa. Quando voltou, só achou o dinheiro da conta. No carro, a caminho do quarto dela, Nina já me comia com os olhos.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Bilhete perdido na carteira

"Alfredo, te escrevo enquanto você dorme e é tão bom te ver assim. Parece um menino, o meu menino. Você sonha comigo? Sonha com outras? Sonha? Acordei porque me dei conta que teu cheiro e calor e braço e sexo passaram a fazer parte do meu sono, assim como esse quarto, esses lençóis. Não sei se me dei conta ao dormir, mas percebi que nossas vidas já estavam interligadas e que vou sentir falta de tudo, ainda que te ame e não queira deixar de te amar. Engraçado agora, descobri teu sexo alerta e o acariciei, o envolvi nas mãos e você continuou menino, mal se mexeu. Será que se eu me apoderar dele você acorda?

Nina"

Acordei.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Tomara que seja uma menina

- Você cortou o cabelo, amor?

Nina sorriu na entrada da porta. Tinha um brilho nos olhos que nunca havia estado lá antes, e desconfio que nunca esteve mais depois. Mas lembro especialmente de seus cabelos naquela noite, um negro que metalizava os olhos e lhe destacava os lábios e a primeira curva dos seios. Pareciam estar ainda mais negros, ela, nascida ruiva.

- Não, bobo, só fiz escova. Mas vou tomar a observação como elogio.

Ela entrou pela casa e foi para o quarto, eu olhando como se nunca a tivesse visto entrar pela sala, deixar a bolsa na mesa, vir até a mim no sofá, beijo, descalçar as sandálias, ir até a cozinha e conferir a geladeira, beber um e dois copos d'água e finalmente se dirigir ao quarto. A revista aberta em minhas mãos e meus olhos presos naquela mulher.

- Estou tão feliz.

Nina se postou na porta do quarto e sorriu. Eu sorri por reflexo, não conseguia deixar de sorrir diante daquele sorriso dela, e naquela hora um sorriso novo, como se ela houvesse sido refundada.

- Vamos sair hoje, Alfredo! Você ainda me deve aquela janta de semana passada!

Havia naquele brilho uma excitação de menina que faz artes de moça e curte o segredo ainda. Eu estava encantado, havia algo nela e tentava descobrir o quê. Fomos jantar e fomos passear de mãos dadas na volta e fez-se o amor na cama, ela e seu segredo.

Apertou-se contra mim na hora do sono e guiou minha mão sobre o regaço pra dizer feito moça apaixonada do primeiro namorado: "Tomara que seja uma menina".

Ela estava tão feliz.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Introdução, ainda que perdida

Talvez se eu não tivesse conhecido Nina, eu ainda conservasse alegria no olhar ou nos gestos cotidianos.

Mas a gente está atropelando o andar, e não sou nenhum Machado de Assis pra tirar a ordem das coisas e me fazer compreender brilhantemente bem. Comecemos essa introdução como se deve, introduzindo o contexto por onde navegará esta narrativa.

Meu nome é Alfredo. Acho um nome meio ridículo para um homem do meu porte, 1.86m, 88kg, calçados de número 43. Alfredo me rendeu ao longo da vida apelidos ridículos e mulheres que me confidenciavam trocadilhos com o molho de nome similar - Al Freddo. Eu não tinha tanto bom humor quanto fazia elas acrditarem.

Talvez eu tenha sido feliz até Nina aparecer, feito manhã de sol no Parque da Redenção, me iluminando todo e renovando minha pele e enchendo de sangue oxigenado meus músculos. Até então eu tinha sido um cara normal, sem maiores glórias ou tragédias, noves fora uma perna quebrada num acidente de bicicleta.

O fato é que hoje sou um homem gasto, desgostoso e ácido. Portanto, não espere de mim finais felizes. Ironicamente, neste diário entrarão passagens sobre os dias felizes da minha vida.

Tudo se deu no tempo de Nina.